São Paulo. O ponteiro começa a bater. Os corpos, ainda sob meia luz, como pêndulos, balançam de um lado para o outro. À medida em que vão sendo revelados, alguns bailarinos iniciam a marcação em outra batida. Um deles começa a correria, sem sair do lugar. Parece que é da energia gerada por esse movimento que, como faíscas, os intérpretes se jogam pelo espaço do palco. É a música quem dita o andamento, e é com as variações desta que Cassi Abranches dá início ao primeiro ato de sua dança em que o tempo é desdobrado em três movimentos.
“Agora”, espetáculo que estreou nesse fim de semana no Teatro Sérgio Cardoso, na capital paulista, é uma das obras que integram a temporada 2019 da São Paulo Cia. de Dança – a outra é “Trick Cell Play”, do importante coreógrafo canadense Édouard Lock. Se era dele toda a pompa e circunstância da noite de estreia, foi ela, a ex-bailarina do Grupo Corpo, paulistinha quase mineira, que, de forma bem mais despretensiosa, esquentou o público com uma dança vigorosa.
“Agora” tem muitas inspirações. Nasce de um desejo de falar do tempo – do que passou e do que vivemos –, bebe na literatura de Gabriel Garcia Marquez e seu “Cem Anos de Solidão” – sem que isso esteja ilustrado claramente na cena – e dialoga com a trilha assinada por Sebastian Piracés, criador da banda Francisco, el Hombre.
Com três momentos claramente divididos, a trilha proporcionou que a coreógrafa trabalhasse com as noções de passado, presente e futuro. E há a presença constante de uma figura mítica, feminina, que perpassa todos esses tempos. É de memória que estamos falando. O que se foi tem uma leveza, uma certa calmaria, os bailarinos se movimentam como se andassem para trás. No presente, tem sempre alguém correndo. “O que existe é o agora”, nos lembra a voz feminina a capela durante o único solo da coreografia. O futuro parece estar nesse ímpeto de se lançar à frente, no caminhar em coletivo. Ah, e no que vem adiante, a gente se joga!
Juntando tudo isso, o que vemos são 20 minutos de intensidade, um movimento de vai e vem, que avança e retrocede, sempre veloz, cheio de energia. É um calor que vem dos trópicos, a luz quente de Gabriel Pederneiras, os tons terrosos e solares do figurino de Janaina Castro, uma malemolência nos quadris, os braços amplos e arredondados, um batuque que se transforma em guitarrada, um toque meio indígena, momentos quase de arrocha. Como se o urbano se encontrasse com o sertão – e aí cabe ainda o rock, os movimentos da dança de rua e outros elementos que Cassi, sem deixar de lado suas origens, vem somando à sua linguagem.
“Agora” se constrói de maneira circular, como uma roda que não para de girar. Como o tempo. Termina da maneira que começa. O ponteiro que não para nunca de bater.
Minientrevista / Cassi Abranches / Coreógrafa
“Agora” é sua terceira criação para a SP Cia de Dança. O que se manteve em relação ao “Gen”, de 2014, que foi a primeira, e o que mudou nesta criação?
Curiosamente, vou falar sobre o tempo. Acho que o ‘Gen’ eu estava recém parando de dançar, trato disso no balé, dessa transição de bailarina para coreógrafa. Era o ateliê de jovens coreógrafos, não era a criação principal do ano. Tinha menos tempo, menos grana, menos estrutura. E eu amo “Gen”. O que eu tive agora foi mais tempo de rodagem mesmo, já exercitei tanto mais a criação, também tenho hoje muita curiosidade de beber em muitas fontes, com tudo que pode me estimular. Estou com o canal muito aberto para inspirações. E o que estava lá e se mantém aqui é um trabalho de descoberta de linguagem de movimento, do que começou ali em ‘Gen’. Tem coisas que se conectam, mas hoje menos intuitivo e mais trabalhado.
No “Suíte Branca”, que você coreografou para o Corpo, tinha a pesquisa sobre os planos e a gravidade norteando a coreografia. O que te moveu em “Agora”?
“Agora” tem uma construção muito clara dos três movimentos do balé, sendo a primeira mais musical, brincando com o ritmo e com a velocidade, ora lento, ora no speed, a memória cronológica do passado e um calor que se chega para perto do fim que é a temperatura do calor humano. Tive a ousadia de mergulhar no ‘Cem Anos de Solidão’ e o que eu procurei nesse trabalho foi trazer insumo inspirador. Não narro nem conto a história, mas trago elementos que me permitam traçar uma dramaturgia. Eu gosto de movimento da construção veloz, das cenas rápidas, no sentido de atrair os olhos, mas me arrisco mais com a construção de dramaturgia, tento trazer junto com a dança. E o grande barato desse balé é pensar que o tempo hoje é acelerado para tudo, vivemos em correria e queria sentir um pouco isso no balé, que parecesse uma coisa só.
A gente conversando, você me disse que, de alguma maneira, você está buscando a dança brasileira da sua geração. Como você pensa essa dança?
A dança da minha geração é a que pode receber informações das mais variadas. Quando comecei a dançar, não existia nem internet. A gente se descobria pelos mentores, lógico, mas muito pela nossa experiência. Hoje, como criadora, tenho milhões de possibilidades de receber informações do mundo inteiro. Quantos movimentos não vêm do k-pop, do hip hop, e não só as danças populares do Brasil, como o forró e o frevo. O passinho, no Rio, é absolutamente brasileiro, que vem do funk, que é carioca, que é também americano, que é base do hip hop. Tá tudo misturado. Como traçar um perfil para a dança contemporânea brasileira assimilando esses elementos, mas sem perder o DNA, o nosso jeito quente de dançar e de viver.
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