Líbano Soldados cristãos no leste de Beirute, o marco zero nos conflitos armados locais, erguem símbolos religiosos como um aviso para as milícias xiitas
Dolorosa, buscando a comunhão nas pedras frias ou talvez algum vislumbre das agonias sofridas por Jesus em suas últimas horas. Pelas ruas flutuam todos os tipos de rosto, todas as possíveis combinações de cor de olhos, pele e cabelo, todos os trajes e modos de vestir: cristãos africanos negros como o ébano em túnicas berrantes chamadas dashikis, alvíssimos cristãos finlandeses vestidos como Jesus com uma coroa de espinhos na cabeça, cristãos americanos de tênis e boné estampado com a expressão "I love Israel". Parecem todos estar aparelhados para a batalha do Armagedon.
Todos vêm porque foi aqui que o cristianismo nasceu. Em Jerusalém e seus arredores ficam os morros rochosos em que Jesus andou, ensinou e morreu - e onde mais tarde seus seguidores oraram e batalharam pela moldagem dos ensinamentos do mestre. Apinhados de judeus convertidos nas cavernas da Palestina e da Síria, os árabes estiveram entre os primeiros a ser perseguidos por causa de sua nova fé, e entre os primeiros a ser chamados de cristãos. Foi aqui, no Levante - uma área que inclui territórios hoje pertencentes a Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina -, que centenas de igrejas e mosteiros foram construídos depois que o imperador romano Constantino legalizou o cristianismo, em 313, e designou como Terra Santa as províncias levantinas. Mesmo depois que os árabes muçulmanos conquistaram essa região, em 638, ela permaneceu predominantemente cristã.
Na Cisjordânia, agricultores cristãos perderam seus olivais quando Israel cercou um assentamento.Foto de Ed Kashi |
Num pequeno apartamento na orla da cidade, um jovem casal de cristãos palestinos, a quem chamarei de Lisa e Mark, prepara-se para a refrega. Lisa, ainda de calça jeans e camiseta, luta para fazer sua filha de 18 meses, Nadia, entrar em um vestido branco de Páscoa. Mark, de pijama, tenta em vão impedir que o filho Nate, de 3 anos, arruíne a calça e o colete novos que conseguiram vestir nele depois de muito sufoco. Nate, cujo humor ricocheteia entre o do Homem-Aranha e o de Átila, o Huno, investe em seguida contra a tevê, a pintura do Menino Jesus na parede, o vaso de flores sobre a mesa, e Mark, um sujeito grandalhão e esquentado, bufa. São 8 horas de uma gelada manhã de março, e ele já sua em bicas. Mas é Páscoa, tempo de otimismo e esperança, e essa mais ainda para eles.
É a primeira Páscoa na vida de Mark que lhe permitem passar com a família em Jerusalém. Ele é de Belém, na Cisjordânia, e seus documentos de identidade foram emitidos pela Autoridade Palestina; Mark precisa de autorização de Israel para visitar os seus. Lisa, cuja família vive na Cidade Velha, tem documento de identidade israelense. Assim, embora sejam casados há cinco anos e morem no apartamento alugado na periferia de Jerusalém, pela lei de Israel não podem residir sob o mesmo teto. Mark mora com os pais em Belém, a menos de 10 quilômetros, que parecem ser mais de 100, do outro lado do posto de controle e da barreira de concreto de 7 metros de altura chamada de O Muro.
"Dos cristãos com quem eu cresci, 80% foram para outro país à procura de trabalho", lastima-se Mark. Mas ele entende a razão. Formado em sociologia com especialização em assistência social, Mark está procurando emprego - qualquer um - há quase dois anos. "Estamos cercados por esse muro gigantesco, e não há trabalho", diz ele. "Isso aqui parece um experimento científico que confina ratos num lugar fechado, vai diminuindo o espaço dia a dia, introduzindo novos obstáculos e mudando as regras até que os animais enlouquecem e começam a devorar uns aos outros. É bem assim."
Todo habitante de Israel ou da Palestina convive com a tensão. Mas os 196,5 mil cristãos árabes da Palestina e de Israel, que de 13% da população em 1894 passaram a menos de 2% hoje, ocupam um espaço asfixiante entre os traumatizados judeus israelenses e os traumatizados muçulmanos palestinos cuja crescente militância vincula-se a movimentos islâmicos da região que às vezes atacam cristãos árabes. Na década passada, "a situação degringolou para os cristãos árabes", diz Razek Siriani, um quarentão franco e vivaz que trabalha para o Conselho das Igrejas do Oriente Médio em Aleppo, na Síria. "Somos uma ínfima minoria rodeada por vozes coléricas", alarma-se. Os cristãos ocidentais pioram a situação, explica Siriani, refletindo um sentimento expresso por muitos. "A razão do caos é o que os cristãos do Ocidente, encabeçados pelos Estados Unidos, vêm fazendo no Oriente", diz ele, citando as guerras no Iraque e no Afeganistão, o apoio a Israel e as ameaças de "mudar o regime" feitas pelo governo Bush. "Para muitos muçulmanos, sobretudo os fanáticos, parece que as Cruzadas começaram de novo: uma guerra contra o Islã travada pela cristandade ocidental. E nós, que somos cristãos árabes, somos vistos como inimigos. Culpados por tabela."
Mark e Lisa, bem como os cristãos árabes de todas as partes, vivem debatendo se devem deixar sua terra natal para sempre. Mark tem um irmão na Irlanda, outro em San Diego e ele próprio morou nos Estados Unidos por alguns anos. Obteve seu green card, e, em 2004, trabalhava na Califórnia quando se casou com Lisa em Jerusalém. Ela tentou viver em San Diego por algum tempo, mas sentiu saudade da família. Por isso, o casal voltou para sua terra depois que Nate nasceu.
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