Quando se fala em estupro no país, a sociedade dá o veredicto

De 50 mil casos anuais no Brasil, 70% são cometidos por conhecidos


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No escuro. Os casos de estupro no Brasil são subnotificados: de acordo com o Ipea, apenas 10% deles chegam a ser denunciados

“Ele era tido pela família como uma pessoa muito prestativa, e, quando eu tocava no assunto, era questionada pelos parentes como se aquilo fosse coisa da minha cabeça”, lembra Ione, 27, sobre a reação da família quando falou do estupro que, ainda criança, sofreu do tio. No país em que 70% desses crimes são cometidos por conhecidos da vítima – conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) –, o caso envolvendo o jogador Neymar reacende a discussão sobre a “cultura do estupro” no Brasil.
O termo, de acordo com a ONU Mulheres, é usado para abordar as maneiras como a sociedade culpa as vítimas de assédio e normaliza o comportamento sexual violento dos homens.
Frases como “mas ela estava de saia curta”, “ela estava indo para uma festa”, “ela não deveria andar sozinha à noite”, “mas ela estava pedindo”, “ela estava provocando” são exemplos de argumentos comumente usados em todas as esferas da sociedade.
Julgamento social
Na última semana, o tema envolvendo o jogador Neymar teve um alcance de mais de 92 milhões de pessoas nas mídias digitais. No entanto, 69% dos comentários faziam brincadeiras sobre o caso. Na arena digital e nas ruas, o julgamento foi formado, sendo que 58% defendiam o jogador e 42% o criticavam.
Pivô do escândalo, a modelo Najila Trindade disse ao SBT: “É mais fácil me incriminar como puta e, fim, arquivar o caso. (...) Mulheres continuarão a ser estupradas, violadas, violentadas e tratadas como lixo!”.
Existe todo um “arranjo que desacredita a mulher quando ela vem a público falar da violência”, afirma a doutora em psicologia forense e professora da Universidade Vila Velha (UVV-ES) Arielle Sagrillo. “Quando uma vítima vem a público dizer que foi assaltada, ninguém questiona a roupa, por que ela estava na rua ou usando um telefone em público. Nada disso é questionado em nenhum outro crime que não os sexuais”.
De acordo com Arielle, a teoria de mitos de estupro proposta por Burt ainda em 1980 mostra como crenças distorcidas ou equivocadas, por serem muito persistentes e amplamente divulgadas, deturpam a realidade.
“Isso faz muitas pessoas acreditarem que o estupro é uma violência cometida unicamente por estranhos, com transtorno mental, com muita agressão física, que só é estuprada a mulher que fez por merecer ou provocou, e que o número denúncias falsas é grande”, afirma a psicóloga.
Uma em cada três
Segundo Arielle, há muito mais mulheres escondendo estupros do que inventando. As estimativas sugerem que uma em cada três mulheres em todo o mundo já foi (ou está sob o risco de ser) agredida sexualmente.
Especificamente no Brasil, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sugerem que, anualmente, 50 mil mulheres são vítimas de estupro. Mesmo alarmantes, os dados podem estar subnotificados, pois, conforme o Ipea, apenas 10% dos casos chegam a ser denunciados. “Justamente porque as vítimas sabem que estão inseridas numa sociedade que vai desacreditá-las”, diz a doutora.
Nenhuma mulher está a salvo dessa forma de violência, afirma Arielle. Então, quando existe um caso em que o suposto agressor não corresponde a esse estereótipo, os mitos vêm à tona. Segundo ela, não é incomum que as mulheres continuem com o agressor depois do episódio de violência.
Arielle lembra ainda que o estupro é caracterizado pela ausência de consentimento. “Não interessa se a relação começou consensualmente, isso não invalida a violência e não tira da mulher o sofrimento com o trauma em consequência disso”, afirma.
‘E, se ela queria, então não houve um estupro, né?’
Bastante popular nas redes sociais, a professora universitária, blogueira feminista e pedagoga argentina Lola Aronovich comentou o caso envolvendo Neymar. Na sua opinião, a grande maioria das pessoas que imediatamente inocentam o jogador e condenam a mulher pensa que só o fato de a modelo ter ido para Paris se encontrar com ele num hotel já mostra que ela queria transar com ele. “E, se ela queria, então não houve estupro, né?”, questionou Lola em um post no seu blog.
“Essa gente provavelmente não acredita que existe estupro marital. E crê que uma prostituta não pode ser estuprada – afinal, ela vive de fazer sexo. É só o cara pagar que pode fazer o que quiser com ela”, ironizou.
No mesmo post, Lola cita o livro “Eu Nem Imaginava que era Estupro”, de Robin Warshaw, publicado em 1988. Segundo ela, a obra indica as reações mais comuns após um estupro. “Se as mulheres fossem apenas atacadas por um homem estranho numa rua escura à noite, reconheceriam aquilo como estupro. Mas, quando é por um conhecido, fica mais confuso. Portanto, uma das primeiras reações das vítimas é a negação”, diz.
A segunda reação é a dissociação (a vítima se afasta psicologicamente), seguida pela autoacusação (a vítima sente-se culpada) e pelo posterior silenciamento da “voz interior”. A quinta reação, escreve Lola, é não se defender. “Somos educadas para não fazer escândalo”, diz. A sexta é não denunciar, e a sétima reação é tornar-se uma vítima novamente.
A repercussão do texto foi tanta que Lola fez uma outra publicação com casos de três mulheres que enviaram relatos de estupros. “Vítimas são vítimas. Só pensava que ninguém acreditaria em mim, afinal, eu fui para o motel com ele”, relatou M. Já no relato de L., ela conta: “Quando fomos fazer boletim de ocorrência, a policial que me examinou fez questão de perguntar o que eu tinha feito pra provocar o estupro”.
Crenças estereotipadas sobre estupro
Alguns mitos comuns:
- Estupro é “sexo grosseiro”;
- Mulheres acusam estupro por vingança;
- Algumas mulheres gostam de sexo violento;
- Estupros são motivados por desejo sexual;
- Estupradores são pessoas esquisitas, psicóticas e solitárias;
- As vítimas de estupros estavam pedindo por isso;
- Apenas mulheres más e/ou bonitas são estupradas;
- Não ocorre estupro entre pessoas casadas;
- Se a mulher não resiste, ela deve ter desejado ser estuprada.

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