Império de seita vai de lojas e fazendas a rádio sertaneja

Enquanto isso, seguidores vivem vida simples e sem receber por trabalho


JESUS A VERDADE QUE MARCA
Agressividade. Seguidores da comunidade foram procurados pela reportagem, mas não quiseram falar e ainda fizeram ameaças
SÃO VICENTE DE MINAS e MINDURI. No estúdio da rádio, entre pôsteres de cantores sertanejos autografados, o locutor anuncia a próxima música. Enquanto isso, um frentista do posto de gasolina atende com simpatia mais um cliente, e um lavrador bate enxada com o corpo quase todo coberto para se proteger do sol. Em comum entre as cenas acima está o fato de todos trabalharem sem receber nenhum centavo nas dezenas de comércios e fazendas controladas pela seita Jesus, a Verdade que Marca, nas cidades de São Vicente de Minas e Minduri, ambas no Sul do Estado. Em dez anos na região, eles construíram um império, e agora quatro de seus líderes estão presos, acusados de trabalho escravo, tráfico de pessoas, estelionato e lavagem de dinheiro.

Nas cerca de dez fazendas e dezenas de lojas do grupo, que vão de postos de gasolina a uma rádio de música sertaneja, as atividades voltaram ao normal nesta terça, um dia após a operação da Polícia Federal chamada De Volta para Canaã. Já a rotina das duas cidades não é mais a mesma desde que os seguidores da seita começaram a chegar, em 2005, sempre com um ar de mistério e resistência a interagir com a população local.

Com pouco mais de 7.000 habitantes, São Vicente de Minas foi a única cidade da região que registrou crescimento populacional desde 2010. E ele foi, em grande parte, impulsionado pelos “paulistas”, como são chamados os membros da comunidade em Minduri e São Vicente de Minas. Se, quando começaram a chegar, enfrentaram uma enorme resistência, atualmente a convivência é mais harmoniosa. Moradores dizem que eles pouco conversam e não é comum tentarem “converter” quem é de fora.

Muito dessa maior tolerância veio com o crescimento da influência do grupo. Em São Vicente de Minas, eles elegeram um vereador, Miguel Donizete (PTC), que está entre os presos na operação de segunda-feira, e representantes em conselhos municipais. Já em Minduri, eles controlam a Rede FM, rádio com maior audiência na região e sem nenhuma menção a temas religiosos.

Curiosidade. Mas se os seguidores já incomodam menos os moradores, a curiosidade sobre o que acontece dentro dos limites da comunidade e a sensação de que “há alguma coisa de errado acontecendo” permanecem. “Eles não param de comprar fazendas. As que não compram, alugam. Têm esse monte de comércio, fazem todos os negócios em dinheiro vivo e não gostam de interagir com o restante dos moradores. Claro que tem coisa errada aí”, frisou o pedreiro Francisco Olinto, 60, morador de Minduri.

Já os vizinhos às terras da seita não se incomodam tanto. “Eles até trouxeram o desenvolvimento, produzem muito, vendem barato, e o atendimento em suas lojas é elogiável. Mas tem que ver essa relação deles, porque tem uns muito pobres e outros que rodam de caminhonete de luxo”, afirmou o fazendeiro Agenor Teixeira, 70. “De qualquer jeito, se você for pensar, as pessoas que estão lá, estão porque elas querem. Você pode oferecer o salário que for para eles, que não saem de la”, ponderou o fazendeiro.

JESUS A VERDADE QUE MARCA

São Vicente de Minas e Minduri. “Se não trabalhar, não come, preguiçoso”, isso era o que ouvia Jean*, aos 8 anos, quando era obrigado a trabalhar em uma das fazendas da comunidade Jesus, a Verdade que Marca. Sua mãe, Kênia*, 37, é quem conta a história do filho, com voz firme e ressentimento de quem por 13 anos viveu com o grupo, a maior parte deles contra sua vontade. Privada do contato com o restante da família, com restrição para ver o próprio marido e até os filhos homens, ela diz que o tempo que ficou na fazenda foi um pedaço de sua vida jogado fora e um trauma para os seis filhos que tiveram que dividir os estudos com as tarefas obrigatórias nas fazendas.

“A partir dos 8 anos os meninos já iam trabalhar. Eles tinham que acordar cedo, às 7h. Ficavam na lavoura ou no curral até umas 10h, quando saíam para a escola. Jean hoje tem 17 anos e problemas de relacionamento por causa do trauma que sofreu”.

Costureira, ela entrou para a comunidade em dezembro de 2000, seguindo o marido. O casal vendeu tudo que tinha e entregou R$ 21 mil para a seita. A promessa era de uma vida tranquila, onde “tudo era de todos”. Depois de rodar por outras fazendas, ela chegou a São Vicente de Minas, e foi a partir daí que surgiu a vontade de deixar o grupo, o que só aconteceria em agosto de 2013.

Nesse período, trabalhou como secretária da seita e dando aula de reforços aos jovens. “Nunca aceitei trabalhar na roça e sempre fui vista como rebelde por eles”. Seriam ao menos 80 crianças na seita na região. Para os adultos, a jornada de trabalho é extensa, das 7h às 18h, na maioria dos casos de domingo a domingo.

Relacionamento. Durante o tempo em que esteve na comunidade, Kênia teve dois filhos, mas pouco viu o marido. “Os homens são separados das mulheres. Vivíamos em galpões com 38 pessoas, dormindo no mesmo lugar e dividindo três banheiros. Havia restrição até para ficarmos com nossos filhos homens. A mulher só poderia se deitar com o marido com a permissão dos líderes e com o único objetivo de procriação. O prazer carnal era proibido para todos”, lembra. Segundo Kênia, na comunidade as mulheres vivem para servir os homens e devem ser completamente submissas a eles.

Com o passar do tempo, a descrença se transformou em revolta. Enquanto a maioria das pessoas vivia em condições insalubres, os líderes moravam em grandes casas nas cidades, algumas com piscinas. Eles tinham carros de luxo e comida diferenciada. Apesar de chamarem todos de colegas, tinham privilégios. Ela e os demais usavam roupas simples, como calçados de borracha para o trabalho rural e blusas de malha.

Em 2010, tentou sair pela primeira vez, mas teve medo. “Há uma enorme pressão psicológica, e os rumores de perseguição me amedrontavam”. Três anos depois, pegou a filha mais nova, hoje com 4 anos, e saiu. Antes conversou com o pastor Cícero Araújo, líder do grupo. “Ele parece ser um homem bom. Dele não tenho mágoa. Mas os líderes abaixo dele faziam o que queriam”, revela.

Kênia saiu com a promessa de que teria auxílio-moradia e alimentação por três meses pagos pela comunidade, o que nunca aconteceu. Dois meses depois, o marido foi expulso da comunidade por não cuidar bem da mulher. Passou na casa dela, deixou os quatro filhos homens e sumiu.

Um ano após sair da comunidade, o filho de 13 anos foi diagnosticado com câncer no cérebro. Dos líderes da seita não recebeu nenhum apoio. Pelo contrário, eles usaram o caso para reforçar a lavagem cerebral dos fiéis. “Andam dizendo que isso é maldição de Deus porque eu saí. Mas eu sei que Deus não é o que eles pensam”, disse.
Fonte: http://www.otempo.com.br/cidades/crian%C3%A7as-em-trabalho-escravo-1.1089845

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