Desenhando a liberdade

Cartunistas mineiros prestam tributo a colegas franceses mortos na mostra “Je Suis Charlie, Uai” na Aliança Francesa


DANIEL OLIVEIRA

Desde o atentado à redação do semanário francês “Charlie Hebdo” no dia 7 de janeiro, quando 12 pessoas foram mortas, o cartunista José Carlos Aragão se encontra preocupado. Ele não sabe se o humor vai se sentir intimidado depois disso, ou se vai partir para cima de vez. “Não sei que tipo de retaliação vai vir do outro lado, de quem se opõe à nossa sede de liberdade e à nossa irreverência indomável”, reflete. E outro dia, andando pelo centro da cidade, viu uma pichação nos muros da Faculdade de Direito da UFMG: “Je suis Al Qaeda”.
RECORTARRRRRRR
Histórico. Cartaz resgata vínculo entre ideais dos Inconfidentes e da Revolução Francesa

“Aquilo é uma brincadeira inconsequente ou existe algum fundamentalista radical em BH disposto a mais alguma coisa?”, questionou-se. Todas essas pulgas atrás da orelha levaram o artista a propor à Aliança Francesa em Belo Horizonte, da qual ele também é conselheiro, uma forma de trazer esse debate global para a capital mineira.

O resultado é a exposição “Je Suis Charlie, Uai”, que reúne o trabalho de 23 cartunistas na galeria da instituição a partir desta quarta-feira. O evento, que pretende ser um tributo aos chargistas franceses mortos, começa com a mesa-redonda “Sem Liberdade, Não Tem Graça”, às 18h, no auditório do Centro de Arte Popular da Cemig, segue com a abertura da exposição, às 19h30, na Aliança, e contará, ainda, com a divulgação de dois manifestos.

Um deles é um mural que será resultado de um ateliê com início nesta segunda, sob a orientação de Júlia Panadés e Wagner Braccini (leia mais na página 2). O outro é o “Manifesto dos Cartunistas Mineiros” pela liberdade, subscrito por todos os 23 artistas participantes – entre eles, Lute, Aroeira, Duke, Lor, Ziraldo e o próprio Aragão.

Alguns desses nomes já se reuniram na Aliança Francesa há quase 40 anos, na exposição “Humor de Minas”. Realizada contra a ditadura militar, ela foi a inspiração que levou Aragão a idealizar “Je Suis Charlie, Uai” como uma reedição com os mesmos artistas.

“O critério foi: ‘você tem o contato de fulano, sabe onde ciclano está?’, vai nas redes sociais, manda e-mail”, brinca Aragão. Para ele, essa produção meio às pressas era inevitável para que não se perdesse o calor da discussão – não por acaso, o dia 11 foi escolhido para a abertura por marcar um mês da grande marcha pela liberdade em Paris.

Foi quando ele se deu conta de que muitos dos cartunistas originais haviam falecido, abandonado o lápis ou não foram localizados, que o organizador decidiu convidar jovens chargistas e reunir as várias gerações em torno do ideal comum da liberdade de expressão.

Segundo Aragão, o manifesto destaca esse tema central na vinculação histórica entre Minas e França, já que a Inconfidência se inspirou na Revolução Francesa. “E o ideal de liberdade deles veio parar na nossa bandeira, da qual nós nos apropriamos no cartaz da exposição, realizado a seis mãos”, explica o cartunista.

O veterano Lor, que participa da exposição e vai ser um dos debatedores da mesa-redonda, pretende dissecar essa relação ainda mais a fundo no debate. Para ele, o conceito fundamental em jogo após os ataques à redação do “Charlie” é a democracia.

“Nós não conseguimos implantá-la majoritariamente no mundo. Não existe liberdade, igualdade e fraternidade na maior parte do planeta como a gente desejaria. Ou seja, a Revolução Francesa ainda não aconteceu para muita gente”, argumenta Lor. Foram essas as reflexões que ele desenvolveu no seu desenho exposto, protagonizado por Gu Ê Krig, personagem da mitologia guaicuru, explorado por ele nos anos 1980 e retomado recentemente.

Ao lado do veterano, estarão nomes da nova geração, como Duke. O chargista do jornal O TEMPO afirma que, desde o atentado, vem esperando por um evento assim. “Muita gente expôs nas redes sociais o que pensava sobre o ataque, o que é bom, mas também ruim porque nem todo mundo conhecia a história, então saíram muitas opiniões desencontradas e, por isso, é importante um debate assim”, opina o artista, que pretende sugerir que a mesa redonda seja gravada e disponibilizada online.

E se Lor pretende colocar em pauta a ameaça à democracia, Duke deseja – a partir de sua experiência ao lidar diariamente com a reação ao seu trabalho no jornal – discutir a delicada questão dos “limites do humor”. “O grande problema desse limite é quem vai estabelecê-lo. Porque bom senso e respeito são conceitos imateriais e individuais. O meu é um, o seu é outro. Então, para mim, ideias devem ser debatidas com ideias sempre. Quando você muda as armas, usando morte e violência para combater ideias, esse para mim é o limite. Os outros são todos relativos”, propõe, confirmando a importância do debate desta semana.

Comentários