Uma sombra de solidariedade


Inusitado. Pessoas se protegem do sol escaldante enquanto tentam entender a pitoresca cortesia de JoãoEm cima de uma escada de cerca de um metro, num ponto de ônibus sem cobertura na praça da Estação, um jovem de 25 anos, vestido num terno bege, abre uma sombrinha. No seu pescoço, está pendurada a placa "Sombra Grátis". É meio-dia e o termômetro mais próximo marca 35º. Em pouco tempo, a sombra produzida pelo jovem é ocupada por uma pequena aglomeração. Quando um ônibus passa e alguém corre para pegá-lo, uma outra pessoa logo toma seu lugar.

Moisés, filho de sete anos da costureira Ilza Soares, até improvisou uma cadeira no degrau da escada. "Vou trazer dois pés de acerola para botar um de cada lado para ajudar", conta a mãe, que acha que o estranho merece uma gratificação. "Eu até faria o mesmo, mas ia ficar de shortinho. Terno nesse calor não dá", confessa.

A sombra, na verdade, é uma performance do artista mineiro João Marcelo Emediato que, desde o dia 1º de abril, abre sua sombrinha na praça, do meio-dia à uma da tarde. Ele vai continuar até o dia 30 realizando a ação, que é parte do projeto Antologia da Árvore do LIO Coletivo, de que João faz parte.

Criado no ano passado, o coletivo reúne um grupo de amigos ligados a diversos campos da arte, que estavam insatisfeitos com seus trabalhos. "Era sempre alguém falando por nós", explica Emediato. "Queríamos achar uma linguagem nossa", diz.

Sem grana nem lugar para ensaiar, eles começaram a fazer performances e improvisações na rua. Quando ficaram sabendo do edital "Artes Cênicas na Rua" da Funarte em 2012, apresentaram o "Antologia da Árvore" e foram os únicos mineiros aprovados, ao lado do tradicional Grupo Galpão.

A performance de João, "Da Sombra", é uma das cinco ações que o projeto vai desenvolver em Belo Horizonte neste ano. Cada uma delas se apropria de um elemento diferente da árvore para construir uma poética.

"A ideia é recuperar as árvores como um marco afetivo da cidade", conta Emediato. Em maio, o LIO vai apresentar a ação "Raízes". E a última delas vai colocar uma orquestra nas árvores de um ponto estratégico da cidade e fazer um baile de gala sob elas.

A praça da Estação foi escolhida "por ser um celeiro das manifestações da cidade e pelo discurso que ela comporta". Segundo João, ela é o coração pulsante da capital, ao mesmo tempo em que "ignora necessidades básicas de seus habitantes, como uma cobertura no ponto de ônibus".

Para ele, no entanto, "o discurso meramente utilitário ignora a cortesia". Motoristas de carro passam e mandam ele arrumar um trabalho. "Um trocador de ônibus gritou `por que?´ três vezes", ri. Mas a única vez em que ficou com medo foi de cair, quando um mendigo bêbado resolveu dormir debaixo de sua escada. "Sou eu que estou ali, não é um personagem", lembra.

Ao mesmo tempo, Emediato conta de uma mulher que nem estava no ponto de ônibus, mas atravessou a rua, comprou uma água e lhe deu. Em outro dia, "todo mundo abriu suas sombrinhas e ofereceu para os outros". Houve ainda uma adolescente que simplesmente se virou para ele e perguntou se "aquilo era solidariedade. Achei lindo", conta com um sorriso satisfeito.

Fonte: http://www.otempo.com.br/capa/uma-sombra-de-solidariedade-1.224173

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