Justiça decide punir com mais rigor quem mata ao volante


Historicamente no Brasil, a morte no trânsito é tratada como homicídio culposo. É quando o acidente é provocado por descuido, imperícia, imprudência, ou o motorista não previu o risco, mesmo dirigindo embriagado ou em alta velocidade. A pena máxima é de quatro anos e pode ser convertida em serviços comunitários. Na maioria dos casos, o condenado escapa da cadeia doando cestas básicas. 


Já no dolo eventual, ou homicídio doloso, a Justiça entende que o motorista assumiu o risco de matar ao andar em alta velocidade, embriagado ou participando de um racha, por exemplo. Nesse caso, o acusado vai para o banco dos réus e é o júri popular que determina se ele é culpado. A pena vai de seis a 20 anos de prisão. E foi essa a interpretação da Justiça no caso da morte de Izabella. 



A luta é também no campo das ideias. Uma corrente jurídica considera que dolo não se aplica a crimes de trânsito. 



“Em geral, os crimes de trânsito são culposos. No dolo, o agente afirma pra si mesmo: 'Aconteça o que acontecer, vou continuar dirigindo em excesso de velocidade'. E na culpa: 'Eu dirijo em excesso de velocidade porque sou um exímio motorista e posso evitar o acidente', explica o jurista Juarez Tavares.



“Se ele participa de um racha, de um pega, se ele dirige o veículo embriagado a meu ver, em tese, ele está assumindo. Ele pode não querer matar ninguém. Até presume-se que não queira, mas ele está assumindo um risco”, avalia o desembargador José Muiños Piñero. 



A Justiça gaúcha quer botar no banco dos réus, por 17 tentativas de homicídio doloso, o motorista que em uma esquina de Porto Alegre se envolveu em uma disputa com ciclistas que faziam uma manifestação. E produziu cenas de violência que chocaram o país e correram o mundo. 



A Justiça entendeu que ao acelerar pra cima dos ciclistas, o economista Ricardo José Neis assumiu o risco de matar ou machucar. Ele se defende dizendo que estava cercado e ameaçado pelos ciclistas e que, diante disso, teve que fugir. 


A nova tendência da Justiça, de mandar para a cadeia quem mata no trânsito, é uma reação a números assustadores. Só em 2010, quase 43 mil pessoas foram mortas nas ruas e estradas do Brasil. Se continuar nesse ritmo, até 2015, vai ter mais gente morta por carros, ônibus, motos, e caminhões no país, do que a tiros, facadas, pancadas, ou seja, todas as outras formas de homicídio. 


“O Brasil tem uma guerra nacional decorrente de acidentes de trânsito. Isso tem que ser de certa forma tolhido, diminuído ou erradicado”, observa o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp. 



O ministro Gilson Dipp foi o presidente da comissão de juristas que elaborou a proposta do novo Código Penal, que está sendo analisada no Senado. 



Para facilitar a punição no trânsito, foi criado um novo tipo de culpa, a gravíssima ou temerária. 
É para quando não for comprovado que o agente quis matar, nem assumiu o risco, mas agiu com temeridade. A pena passa para quatro a oito anos de prisão. 



A proposta de lei enquadra como culpa gravíssima dirigir embriagado ou participar de racha. O racha seria punido com dois a quatro anos de prisão. E embriaguez, de um a três anos. 



Assim, quem mata no trânsito poderia pegar penas maiores, e ir para a cadeia, sem passar pelo júri popular - o que ainda encontra resistência entre muitos juízes. 



No Rio, o juiz mudou o processo contra Rafael Bussamra, que atropelou e matou Rafael Mascarenhas, o filho da atriz Cissa Guimarães. Em vez de júri popular, ele vai responder por homicídio culposo. 



Segundo testemunhas, Bussamra e o amigo Gabriel de Souza Ribeiro entraram num túnel fechado para obras para fazer um racha. Rafael andava de skate com amigos na boca do túnel e foi arremessado a 60 metros de distância. 



O juiz alegou que o atropelador não agiu com indiferença, porque ligou para a polícia e a ambulância. 



“ Os pais, o pai e o irmão foram lá para corromper essa polícia que eles chamaram para ajudar?”, afirma Cissa Guimarães, mãe de Rafael. 



Pouco depois do acidente, Rafael Bussamra, o irmão e o pai foram flagrados por câmeras de segurança corrompendo policiais militares para esconder as provas do crime. 



Os policiais já foram condenados a cinco anos de prisão, em regime semi-aberto, por corrupção passiva. Mais do que a pena máxima a que Bussamra está sujeito por homicídio culposo. 



Cissa recorreu: “Eu vou até o final, pela memória do meu filho. Mas acima de tudo para acabar com essa impunidade que me dá enjoo. Que me dói”. 



Há 12 anos, o advogado Luiz Felizardo Barroso tenta mandar para a cadeia os homens que ele considera responsáveis pela morte do filho. 



“Toda justiça que tarda é a negação da própria justiça. E a nossa, no Brasil, infelizmente, tarda muito”, diz Barroso. 



No escritório, o neto, que tinha oito anos quando ficou órfão, ocupa a mesa do pai, Ricardo de Camargo Barroso. 



Amanhecia na véspera de Natal no ano 2000. Ricardo ia surfar. À sua frente, em outro carro, um amigo surfista, que nunca esqueceu daquela manhã. 



Tinha um carro tombado no meio da pista. Ele e Ricardo deixaram os carros no acostamento, com o pisca alerta ligado. Ricardo tentava tirar o motorista preso nas ferragens. 



“Nisso, o Peugeot começou a pegar fogo. Quando eu estou abaixado pegando o extintor de incêndio, eu escuto um barulho de freada forte e uma batida. Tinha um carro que tinha batido, com a frente toda levantada. E 'cadê o Ricardo? Cadê o Ricardo?', aquela confusão, poeirada danada”. 



Ricardo, outro voluntário que ajudava no socorro do primeiro acidente e a vítima, que até então estava apenas ferida, morreram na hora. 



Na denúncia à Justiça, o Ministério Público diz que o carro que matou Ricardo e mais duas pessoas corria a mais de 110 km/h, dentro da cidade, e participava de um pega. 



Os dois acusados - André Garcia Neumayer, que dirigia o carro que bateu, e Juliano Bataglia Ferreira, que participava do pega - foram mandados a júri popular, mas recorreram até o Superior Tribunal de Justiça, que confirmou a decisão. 



Raphael Mattos, advogado dos acusados, ainda vai pedir embargo no Supremo Tribunal Federal: “Não houve pega, em primeiro lugar. E segundo, nós vamos ter que considerar que esses garotos são suicidas, eles assumiram o risco de ceifar suas próprias vidas a partir do momento que eles batem no outro carro”, defende o advogado. 



Se conseguirem impedir o júri popular, os dois acusados não serão julgados por nada. Depois de 12 anos nos corredores da Justiça, a acusação por homicídio culposo já está prescrita. 



Araçatuba, interior de São Paulo. Dois casos, duas decisões distintas. O carro em alta velocidade, fazendo pega, avança o sinal, provoca o acidente e deixa com sequelas um universitário brilhante. 



O motorista, filho de um fazendeiro, é indiciado por homicídio doloso, foge, e é capturado numa fazenda no Mato Grosso. 



Mas a sensação de que a Justiça de Araçatuba seria mais rigorosa com os crimes do trânsito durou pouco. Menos de três meses depois, o promotor encarregado da acusação se envolveu em um acidente numa rodovia que dá acesso à cidade. Provocou a morte de três pessoas. Mas ele não vai a júri popular. Alessandro, Alessandra e o filho dela, Adriel, de sete anos, morreram na hora. Na camionete do promotor foram encontradas bebidas. Na delegacia, um médico atestou a embriaguez, mas ele se negou a colher material para exame. 



“Se fosse eu, estaria preso. Como ele é promotor e tem dinheiro,está lá”, lamenta Alberto dos Santos, pai de Alessandro. 



O Ministério Público transferiu o promotor Wagner Rossi para São Paulo e o denunciou por homicídio culposo. Cinco anos depois do acidente, o foro especial do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o promotor a quatro anos de prisão, convertidos em serviços comunitários, suspensão da carteira de motorista por quatro anos e indenização de R$ 15 mil às famílias das vítimas. O advogado dele, Eduardo Carnelós, vai recorrer: "Claro que foi uma pena dura. Foi duríssima, foi duríssima. A palavra acidente existe porque acidentes acontecem". 



Ao distinguir entre um acidente inevitável, e o comportamento arriscado e violento que mata no trânsito - a Justiça brasileira não só vai punir, mas prevenir tragédias. 



“A vida da minha filha não tem preço. A gente não quer isso. A gente quer um mundo melhor, onde as pessoas possam sair se divertir, passear, brincar, e voltar pra casa”, pede Argélia.

Acompanhe a reportagem com a repórter Sônia Bridi do Programa Fantástico no link abaixo:

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