Um casal e um país cindidos

As relações familiares são um microcosmo afetado por questões sociais maiores - e sobre as quais permitem reflexões - em dois filmes que ora entram em cartaz na cidade: "Precisamos Falar sobre o Kevin", tragédia adaptada de livro homônimo (leia mais ao lado); e "A Separação", drama iraniano premiado com o Urso de Ouro em Berlim e o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. Agora cotado a levar o Oscar na mesma categoria.

Asghar Farhadi não faz um filme estritamente político, mas as condições de vida no Irã aparecem explícitas nos problemas cotidianos enfrentados pelos dois casais iranianos que se envolvem em uma disputa judicial em "A Separação". Um deles é o responsável mais direto pelo título do filme. Juntos há 14 anos, Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moaadi) representam uma parcela da população instruída, que bem ou mal consegue pagar suas contas e não se submete às mais radicais regras de conduta islâmicas. Simin usa um véu que lhe cobre apenas os cabelos e sua filha vai à escola. O filme parte do momento em que a esposa se depara com a rigidez do sistema judiciário iraniano, ao não conseguir aprovação para se separar do marido, de quem não tem reclamações a não ser a de que ela deseja viver no exterior e ele não.

O segundo casal traz à tona a realidade de outra faixa de iranianos, desempregados, atolados em dívidas e religiosos fervorosos, de modo que a mulher, Razieh (Sareh Bayat), usa o chador,um véu amplo que lhe cobre até os pés e deixa à mostra apenas o rosto.

Razieh e seu marido, Hodjat (Shahab Hosseini), passam a fazer parte das vidas de Simin e Nader por uma eventualidade que toma proporções grandes e complicadas. E aí se evidenciam outras separações às quais o título pode aludir, sobretudo a econômica, a religiosa e a de gênero. Farhadi retrata um país cindido.

Pessoas.  O cineasta já declarou que não faz filmes sobre temas, mas sim a partir de pequenas histórias de vida, das quais depreende assuntos e perspectivas plurais - da infância à velhice, neste caso. 

É curioso como, por mais hábil que o diretor seja em fazer do microcosmo familiar uma metonímia das relações sócio-econômicas em seu país, o espectador tem diante de si, em última instância, um filme sobre pessoas.
Em "A Separação", isso fica claro no modo como Farhadi filma cada personagem, quase sempre com planos fechados em meio-corpo, aproximando o espectador e criando familiaridade, ao mesmo tempo que contempla o estranhamento ao captar também os olhares e não-ditos, em um filme ruidoso, de muito diálogo e confronto. Nesse sentido, vai contra qualquer ideia pré-concebida ou totalizante sobre o cinema iraniano, na qual nem Abbas Kiarostami se enquadra, haja visto seu "Cópia Fiel", um inventivo filme sobre relacionamento amoroso, verdade e arte.  "A Separação" foi sucesso de bilheteria no Irã, atraindo mais de três milhões de espectadores. Um feito para uma obra que expõe a complexidade de um meio social sem propor soluções fáceis nem tomar partido, mas acentuando ambiguidades.


Governo cassou licença
Já no início de "A Separação", um funcionário público pergunta a Simin se há algo de errado com o país para que ela queira deixá-lo. O fato de a personagem não responder não faz do filme de Asghar Farhadi menos crítico em relação ao Irã. Basta a pergunta. Felizmente, o governo de Mahmoud Ahmadinejad, que já transformou em inferno a vida de cineastas como Jafar Panahi, não impôs maiores dificuldades à realização do filme. À exceção das duas semanas de 2010 em que Fahardi teve sua licença para filmar cassada por ter defendido colegas perseguidos pelo regime. Crítico a Ahmadinejad, Pahani foi condenado a seis anos de prisão e proibido de fazer filmes, dar entrevistas ou sair do Irã por 20 anos. O que não o impediu de lançar, clandestinamente, "Isto Não É um Filme", em 2011

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